Artigo da revista Farmácia Saúde do número 40 de Janeiro de 2000
Deixar de comer ou começar a comer de forma exagerada e desaparecer de seguida, procurando refúgio e isolamento, pode muito bem ser um indicador de que a sua filha está a entrar no mundo dos anorécticos/bulímicos – ou mesmo que já lá está. Prepare-se e prepare o resto da família: aproxima-se uma longa cruzada que conta com poucos aliados e muitos inimigos difíceis de combater, uma vez que só existem na cabeça de quem sofre da doença.
Um dia, o espelho começa a reflectir a imagem de uma menina gorda, deformada, de quem ninguém gosta. E torna-se urgente a perda de algumas gramas de gordura, até porque aquelas jeans, de repente, também já não lhe servem – ou estão excessivamente apertadas e reveladoras da gordura que se torna, aos seus olhos, demasiado evidente, assim como a t-shirt que a melhor amiga lhe ofereceu, igual à sua e que cai tão bem no seu corpo magro, liberto do excesso de peso, muito diferente daquele que lhe aparece no espelho do seu quarto. Decide que tem de começar a fazer dieta, ou aquilo que entende como assim sendo: recusa farináceos e deixa de comer bolos e pão. Mas continua demasiado gorda. Tudo, porque, às vezes, não resiste à vontade de comer e devora, literalmente, a comida que lhe aparece à frente. Depois, o sentimento de culpa é tal que só lhe resta fugir em direcção ao espelho, à balança e à casa de banho mais próxima: é preciso deitar fora o que acaba de ingerir; é preciso fazer desaparecer todas as calorias que estão a mais; é preciso ser magra, bonita, amada. Acaba de dar início a um processo que, durante bastante tempo, irá passar despercebido. A família começará por pensar que, aquela filha, que até comia muito bem, está magra, pálida, não convive com os amigos e fecha-se durante horas intermináveis no quarto. Sozinha. Provavelmente, são as consequências da adolescência. Mais dia, menos dia, a crise, que parece instalada, passa, e tudo voltará à normalidade. Mas as coisas não serão bem assim. Refeições abolidas Reparam no seu súbito interesse na composição dos alimentos, na forma como os classifica e mesmo na preocupação que demonstra pela sua partição e arrumação no prato: em relação à carne, por exemplo, verificam que a filha passou a comer, apenas, pequenas quantidades; mas, de preferência, só come peixe cortado aos bocadinhos minúsculos, que mastiga centenas de vezes, e que só acompanha com legumes. E apercebem-se que algumas refeições foram abolidas da rotina alimentar da filha. Surgem as criticas, as discussões e a argumentação: comeu demais na escola, está enfartada ou teve um bom lanche antes da refeição; apetece-lhe estar só e leva o tabuleiro da comida para o quarto porque necessita de estudar. A realidade é que a comida irá parar ao lixo na primeira oportunidade e o bom rendimento escolar acaba por justificar a resposta. Entretanto, o peso continua a diminuir. A roupa larga que opta por vestir não deixa transparecer o estado de magreza em que se encontra. E o tempo vai passando. Perde o período menstrual, mas não perde a força e o dinamismo, que não se percebe onde vai desencantar. Continua a sentir fome, mas controla-se à custa de grande sofrimento, até porque ainda tem de perder mais umas gorduras (que, naturalmente, não tem – possivelmente, nunca teve, ou teve poucas). Os pais convencem-na a ir ao médico de família, que lhe receita umas vitaminas: deve ser cansaço; foi um ano escolar muito intenso. E, claro, recomenda um ginecologista. Há esperança que as férias escolares resolvam o problema. Tal não acontecerá. Antes pelo contrário – a situação está cada vez mais grave. Os pais insistem na necessidade de consultar outro especialista. Com alguma incredulidade, ouvem o diagnóstico: anorexia nervosa, agravada por bulimia. Ajuda na hora certa A anorexia é uma doença que atinge, sobretudo, raparigas adolescentes, assim como a bulimia. No entanto, tratam-se de doenças muitas vezes escondidas durante anos. A Princesa Diana, por exemplo, sofreu de bulimia, assim como a actriz Jane Fonda. Para os doentes, é uma situação incompreensível, cuja resolução se sentem incapazes de alcançar. O problema arrasta-se e agrava-se, até ao dia em que seja descoberto e tratado. Ou, na pior das hipóteses, o nível de substâncias químicas no corpo pode desequilibrar-se de tal maneira que pode dar-se um colapso cardíaco. Não há uma receita para cada caso. E também não há farmacoterapia aprovada. Os doentes que sofrem da patologia têm de ser socorridos por um verdadeiro «batalhão» de especialistas -- nutricionistas, endocrinologistas, psiquiatras e psicólogos, uma vez que a desordem instalada é tal, que só o trabalho de uma vasta equipa poderá solucionar o problema. A ajuda dos técnicos, na hora certa, poderá ser decisiva. Até à cura, ficam pelo caminho situações muito difíceis. A família, desconhecedora da verdadeira dimensão da doença e respectivas consequências, atravessa fases que sente incontroláveis – tem de lidar com a agressividade acumulada e inexistente até então; e mesmo com tentativas de suicídio. Culpabiliza-se por tudo, pergunta constantemente: «Mas onde falhámos?» E as respostas tardam. O apoio e a terapia familiar acabam por ser essenciais. AFAAB A Associação dos Familiares e amigos dos Anorécticos e Bulímicos é uma instituição de Solidariedade Social (AFAAB), sem fins lucrativos, que visa promover os direitos dos doentes com distúrbios alimentares no campo da anorexia nervosa e ou bulimia nervosa. A associação apoia os doentes e respectivas famílias; divulga os sintomas da doença junto da população, por todos os meios possíveis; promove, junto dos adolescentes, principalmente junto daqueles que, devido às suas actividades, se encontram mais expostos ao risco da doença; promove o estudo e a investigação sobre a doença e sua terapia, em estreita colaboração com a comunidade médica e científica; sensibiliza as entidades competentes para a necessidade de um rastreio junto da população juvenil, que permita detectar os casos de doença declarada e estabelecer prioridades e necessidades ao nível de abertura de consultas e locais de tratamento para jovens em sofrimento. Encorajar tratamento Se detectar no seu grupo familiar ou de amigos alguém, cujo comportamento se assemelhe ao que acabou de ler, se lhe parecer que está na presença de uma pessoa que está sofrer de anorexia nervosa ou bulimia, não deve criticar, apontar ou desfilar rosários de conhecimento e culpa. Essa pessoa está em sofrimento, assim como aqueles que lhe estão mais próximos. O melhor é encorajar o tratamento e a procura de soluções. Embora os amigos sejam, na maior parte das vezes, «empurrados» pelo próprio doente para fora das suas vidas, o seu firme apoio é essencial nas fases de tratamento e recuperação. A sua ajuda é, pois, preciosa.
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